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Wednesday, May 31, 2006

 

Hamilton Naki: Glória escondida


Hamilton Naki, falecido em Maio de 2005. No dia 3 de Dezembro de 1967, o corpo de uma jovem mulher foi levado a Hamilton Naki para dissecamento. Ela havia sido atropelada por um carro enquanto comprava doces numa rua da Cidade do Cabo, na África do Sul. Os ferimentos em sua cabeça eram tão severos que a sua morte cerebral foi decretada no hospital, mas o seu coração, incólume, continuava a bater furiosamente. O Sr. Naki não deveria tocar aquele corpo. A jovem mulher, Denise Darvall, era branca, e ele era negro. As regras do hospital, e até mesmo as leis do apartheid do país, proibíam-no a acessar numa sala de operações segregada, tratar de pacientes brancos ou envolver-se com enfermos caucasianos. Para o Sr. Naki, entretanto, o hospital Groote Schuur fizera uma excessão secreta. Aquele homem negro, com suas mãos firmes e hábeis e sua mente afiada como navalha, era bom demais no trato delicado e sangrento de transplante de orgãos.

O chefe cirurgião de transplante, um jovem elegante e sabidamente temperamental Christiaan Barnard havia solicitado a presença de Naki em sua equipe. E assim o hospital havia concordado, declarando, como o Sr. Naki recordaria mais tarde: "Veja bem..., estamos autorizando voce a fazer isso, mas saiba que voce é negro e que este sangue é branco. Ninguém deve saber que voce está fazendo isso." Ninguém, na verdade, veio a saber. Naquele dia de Dezembro, em um canto da sala de operações, Barnard, num rasgo de publicidade preparava Louis Washkansky, o primeiro paciente a receber um coração transplantado. Há uns quinze metros dali, atrás de um painel de vidro, as mãos negras do Sr. Naki removia o coração do cadáver branco e, por horas, canalizou todo vestígio de sangue do orgão, substituindo-o pelo sangue de Washkansky. O músculo, posto a bater novamente através de eletrodos, foi passado para o outro lado do painel de vidro e o Dr. Barnard tornou-se, da noite para o dia, o mais celebrado médico do mundo. Em algumas das fotos pós-operação o Sr. Naki inadvertidamente apareceu, sorrindo largamente sob o seu colete branco, ao lado de Barnard. Ele era "um faxineiro", o hospital esclareceu, ou talvez "um jardineiro". Os arquivos do hospital registravam-no como tal, ainda que o seu salário, algumas centenas de dólares por semana, era equivalente ao de um técnico de laboratório. Era o máximo que o hospital poderia pagá-lo, declararam mais tarde alguns oficiais, para alguém que não possuía diploma. Outros questionamentos sobre diplomas jamais existiram. Naki, nascido numa vila chamada Ngcangane na parte leste da Cidade do Cabo, deixou a escola aos 14 anos, quando a sua família não mais podia bancá-la. Sua vida caminhava para o de um menino de pastoreio de gado, descalço, vestido em pele de animal, como a maioria dos meninos conterrâneos. Ao invés disso, pegou carona até a Cidade do Cabo em busca de trabalho, e conseguiu um emprego de cortador de grama e ajudante de quadra de tênis na Escola de Medicina da Universidade da Cidade do Cabo. Um negro - mesmo um comprovadamente esperto e inteligente como Naki, e tão imaculadamente vestido em camisa impecável e chapeu Homburg mesmo quando trabalhava nos jardins da Universidade - não poderia aspirar ir muito longe. Mas a sua sorte mudou quando, em 1954, o chefe do laboratório de pesquisas animais da Escola de Medicina pediu a sua ajuda. Robert Goetz precisava de alguém jovem e forte para segurar uma girafa enquanto que ele dissecava o pescoço para verificar do porque das girafas não desmaiarem quando bebem (relação tamanho do pescoço e movimento de absorção de líquidos). Naki adaptou-se admiravelmente e logo foi contratado: primeiramente para limpar gaiolas, em seguida para segurar e anestesiar os animais, e a partir daí proceder cirurgias nas criaturas. O laboratório era agitado, com cirurgias constantes de transplante em porcos e cães para a preparação de médicos cirurgiões e, eventualmente, para intervenções em humanos. Naki nunca aprendeu as técnicas formalmente; como ele mesmo disse: "Eu aprendi com os meus olhos". Mas ele tornou-se um expert em transplante de fígado, bem mais complicados do que transplante de coração, e logo estaria ensinando aos outros. Por mais de 40 anos ele instruiu milhares de cirurgiões iniciantes, muitos dos quais se tornaram chefes de departamentos de hospitais. O Dr. Barnard admtiu -ainda que não até 2001, prestes a falecer- que Naki foi provavelmente tecnicamente melhor que ele mesmo era, e certamente mais habilidoso em suturamento de pontos cirúrgicos. Não-aclamado, embora detentor de modesto prestígio, Naki continuou a trabalhar na Escola de Medicina até 1991. Quando se aposentou, conseguiu uma pensão de jardineiro: cerca de 275 dólares por mês. Ele utilizou os seus contatos médicos para conseguir fundos para uma escola rural e uma clinica móvel na parte leste da capital, mas nunca usou dinheiro para si mesmo. Como consequência, pôde pagar para apenas uma de suas cinco crianças para terminar o ginásio. O reconhecimento, com a Ordem Nacional de Mapungubwe e um título honorário em medicina pela Universidade da Cidade do Cabo, veio apenas a alguns anos antes de sua morte, e bem depois do retorno da África do Sul a uma administração negra. Naki aceitou tudo com resignação. Amargura ou rancor não constavam em sua natureza, e havia tido anos e anos de treinamento para aceitar a sua vida do jeito que o apartheid a havia moldado. Naquele dia de Dezembro de 1967, por exemplo, ao mesmo tempo em que Barnard era o centro da imprensa bajuladora, Naki, como sempre, pegou um ônibus até sua casa. Greves, passeatas e bloqueios policiais geralmente atrasavam o seu percurso aqueles dias. Quando o ônibus chegava, transportava-o -em seu terno impecavelmente passado e os seus sapatos meticulosamente engraxados- para o seu barraco de um quarto no vilarejo de Langa. Por enviar a maior dos seus pagamentos para a sua família e filhos, que morava em Transkei, ele não podia se dar ao luxo de ter eletricidade e água corrente em casa. Mas podia comprar diariamente o jornal, e lá, no dia seguinte, ele poderia ler as manchetes do que havia feito, secretamente, com suas mãos negras, num coração branco


Este texto foi-me concedido por um amigo meu, a quem agradeço, mas não foi possivel informar-me sobre as fontes. Apesar de ser versão brasileira Ediberto Lima, esta história é verdadeiramente interessante e demonstra bem a estupidez humana juntamente com a glória humilde de que um ser humano é capaz.

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